Muçurana: Guardiã do Som e do Espaço.
"Eu não terei a minha vida reduzida. Eu não vou me curvar ao capricho ou à ignorância de outra pessoa." Bell Hooks
A muçurana, serpente icônica da América Latina, carrega consigo uma aura quase mitológica. No Brasil, sua habilidade de caçar cobras venenosas — jararacas, cascavéis e corais — lhe conferiu o título de "amiga do campo". Essa caçadora habilidosa, que não utiliza veneno, mas a força de sua constrição, é vista como uma protetora natural. Em vilarejos, há quem diga que ela é enviada pela própria natureza para guardar lares e plantações, e sua morte é considerada mau presságio.
No imaginário popular, a resistência da muçurana ao veneno das presas a transforma em algo quase mágico. Embora não seja completamente imune, sua elevada tolerância às toxinas alimenta a crença em sua invencibilidade. Assim, ela surge como símbolo de resiliência, força e propósito.
Essa metáfora serpenteia até o universo da música instrumental, especialmente no contexto de Curitiba. Sobreviver nesse ambiente exige as mesmas qualidades míticas da muçurana, principalmente para quem não se encaixa no molde social “padrão” — masculino, branco, heterossexual. A música instrumental, que deveria ser território de liberdade criativa, muitas vezes reflete dinâmicas sociais excludentes.
O Coliseu do Jazz
Participar de uma jam session pode parecer, à primeira vista, um convite ao improviso e à troca espontânea. Contudo, essas reuniões carregam códigos invisíveis e expectativas que, em vez de acolher, afastam. Quem toca mais forte, mais rápido, e ocupa mais espaço “vence”. Essa mentalidade ecoa a competitividade de uma arena, o Coliseu do jazz, onde egos se enfrentam sob o pretexto de virtuosismo.
Mas essas jams não são apenas encontros musicais; são vitrines. Quem se destaca nelas tem mais chances de ser chamado para trabalhos e conquistar visibilidade. A exclusão de mulheres e pessoas LGBTQIA+ dessas rodas significa também a exclusão de oportunidades.
Durante meus 32 anos como músico, organizei e participei de inúmeras jams. Contudo, só nos últimos anos comecei a perceber quão limitador e hostil esse espaço pode ser, especialmente para quem não se enquadra no arquétipo dominante. Mulheres instrumentistas raramente apareciam — e quando o faziam, sentiam-se deslocadas.
O Levante das Muçuranas
Foi nesse contexto que, em 2024, na cidade de Curitiba surgiu a banda Muçurana quinteto, formada exclusivamente por mulheres. Inspiradas pela serpente que devora víboras, elas assumiram a missão de romper com a normatividade no cenário da música instrumental curitibana. Tocando arranjos e composições de mulheres, o grupo desafia preconceitos e abre caminhos para futuras gerações.
Nos shows da banda, é comum ver expressões de espanto na plateia, como se o público se perguntasse: “Isso pode?” Não só pode, como deve. Além de uma manifestação artística, o trabalho das Muçuranas é político. Ele propõe um novo imaginário, no qual meninas e pessoas não binárias possam se enxergar como protagonistas no universo musical, em vez de estatísticas de exclusão e violência.
No dia 29 de novembro de 2024, elas deram mais um passo histórico ao organizar a primeira jam session para mulheres e pessoas não binárias em Curitiba, realizada na Casa Pagú. O evento foi acolhedor e emocionante, com participações que iam de veteranas confiantes a estreantes cheias de coragem.
Confesso que, como músico, senti vontade de me juntar à roda. Mas também percebo a necessidade de criar e preservar esses espaços de exclusividade. Por décadas, mulheres desejaram participar de jams sem serem acolhidas; nós, homens, podemos conter nossos impulsos e apoiar ativamente essa transformação.
Uma Nova Era
Deixo aqui minha admiração à Bruna Buschle, Rebeca Friedmann, Ana Julia, Camila Cardoso e Rachel Ramos. Que o som das Muçuranas continue ecoando, com poder de transformação social sem precedentes. E para aqueles que ainda se agarram a discursos machistas e homofóbicos, fica o aviso: o palco não é mais um território exclusivo. Se você se considera uma cobra, lembre-se de que há algo mais forte no caminho — as devoradoras de víboras já estão aqui.